Por Abimael Borges*
Ontem um amigo me disse que estava rezando para não pegar a CoVID-19. Que estava ansioso e com medo. Este é o espírito que paira sobre nossas cabeças. A mídia ajuda a espalhar toda sorte de sentimentos negativos contando os mortos e seus infortúnios dia após dia. Enquanto isso, tantas outras incertezas pairam nos corações angustiados de brasileiros cheios de dívidas e família pra alimentar. Em um cenário caótico como este, como vamos falar em serenidade e paz?
Sim, vamos falar de paz. Paz de espírito para encarar os percalços dessa pandemia com tranquilidade no coração. Vamos falar de serenidade, força vital para encararmos as tempestades do mundo com coragem e destemor.
Comecemos, pois, com uma observação útil: há inúmeros tratamentos médicos ou terapias alternativas que para existir, no dizer jurídico “conditio sine qua non”, que o paciente reconheça que está doente. Sem a autoaceitação da própria condição de doente, o tratamento não é possível. É o caso, por exemplo, do viciado, do alcoólatra, do dependente químico, do que sofre de depressão e etc. São situações da vida que exigem conscientização do próprio indivíduo acerca da sua condição.
A condição humana é algo difícil de se encarar em uma sociedade onde a fantasia e o autoengano são cultuados como se fossem a expressão última da realidade. Essa dificuldade de aceitar a realidade como parte da constituição natural do ser já foi sentida por Nietzsche, quando afirmava que, diante de problemas profundos, agia como quem toma banho frio “entro rápido, saio rápido”, isso na melhor das hipóteses, pois muita gente prefere se esquivar dos problemas e da realidade, buscando o caminho mais fácil, mais simples, mais cômodo, mesmo não sendo o mais sensato.
Se esconder, fugir, negar o problema é muito mais fácil do que encará-lo frente a frente. Criar camadas e mais camadas de personalidade buscando ocultar a verdade ou criando uma fantasia de si mesmo para convencer os outros, oferecendo-os aquilo que julga ser a melhor face de si mesmo. Quando não isso, a cultura do consumismo, da extravagância, da luxúria, para esconder o fracasso espiritual e material do homem moderno.
O grande problema do autoengano é que ele só existe na cabeça do próprio indivíduo, pois é tão óbvio, como já dizia Frejat na música Amor pra Recomeçar, que “rir é bom, mas que rir de tudo é desespero”, é inútil construir tais subterfúgios, pois qualquer pessoa com o mínimo de sanidade percebe que se trata de pura ilusão. Como mostra o Prof. Eduardo Giannetti, em seu livro “Auto-Engano”, que os indivíduos criam sobre si mesmos uma opinião que nem sempre coincide com seus defeitos e qualidades reais. Embora considere certa dose de ilusão útil e necessária à vida humana, seu excesso tira do ser a possibilidade de ver o mundo como ele realmente é.
Resolver o problema do autoengano envolve um princípio básico defendido pelo professor José Monir Nasser, quando afirma que o indivíduo só sabe quem ele realmente é quando está sozinho. A própria existência se apresenta nua e crua na solidão. Nessa situação, de completo abandono, como se estivesse em alto mar em um pequeno barco, sem remo, sem avistar terra em qualquer dos lados, numa noite escura e densa, é a sensação que o ser humano experimenta diante da própria realidade, diante da própria condição. Despojado de toda a artificialidade que nos cerca, de tudo que constitui a vida moderna, os sonhos e desejos.
Bastaria a presença de um único ser humano livre e consciente (ou mesmo tão fantasiado quanto o primeiro), para todas as reais atitudes humanas se tornarem completamente camufladas, artificiosas, simuladas ou dissimuladas. Nessa situação, a pessoa deixa de ser quem realmente é e passa a ser uma personagem atuando no palco de uma pseudo-realidade que ela quer que exista a seu bel prazer.
Pois é nesse sentido que vai a nossa busca por paz e serenidade: livrar-nos do auto-engano. Da fascinante tentação de acreditarmos naquilo que queremos e aceitarmos a realidade da nossa pobre condição humana. Deixar o mundo das ilusões infantis e adentrarmos o mundo cruel e triste de um ser absolutamente impotente diante das forças indomáveis do universo à nossa volta. Só assim se aprende a ser feliz com o pouco, a ser humilde com o muito e em todas as situações, ser sempre gratos.
Para aquele amigo que disse estar rezando para não pegar a CoVID-19, eu respondi que ele deveria rezar pedindo forças para resistir, caso pegue. Oração não é para nos tornar super-homens, nos blindando dos males a que todos igualmente estamos sujeitos. A função da oração é nos fazer aceitar as dores do mundo com resignação e acatamento. E para quem não acredita em orações ou rezas, ter sempre em mente que a condição humana é igual para todos, e se assim não fosse, alguns humanos seriam eternos, mas todos nos igualamos na morte.
Como viver com serenidade e paz com tudo isso? Mantendo a concentração naquilo que podemos: cuidar de si e dos demais, oferecer conforto a quem precisa. Quanto àquilo que está fora da nossa capacidade de dar solução, simplesmente aceitar, buscar deixar de lado, usar o pouco de capacidade de ilusões que nos é necessária para abstrair e tocar em frente. Fazer girar a roda da vida com as limitações que temos.
*Abimael Borges é Advogado e Professor de Filosofia e Ética da FATEC/BA