Prof. Abimael Borges
Acusado de subverter a juventude ateniense, Sócrates, o filósofo, foi julgado, condenado e executado por ingestão de uma dose de cicuta. A cicuta é uma planta europeia com o nome científico Conium maculatum e, na Grécia, era usada como castigo fatal aos que cometessem crimes políticos. Ela age no organismo atingindo o sistema nervoso central, estimulando e deprimindo de forma abrupta e descontrolada e levando o paciente a graves convulsões, paradas respiratórias entre outros sintomas, até a morte.
Se consideradas as leis da época, de fato o Pensador mereceu o processo que sofreu e ele, mais que qualquer outro ateniense estava plenamente consciente disso. Mas como alguém poderia ser capaz de aceitar, pacificamente, a uma condenação à morte? Chance de fugir ele teve. Horas antes da execução de sua pena, seus discípulos organizaram a sua fuga, mas ele se recusou.
Sócrates, o homem mais sábio de toda a Grécia segundo o Oráculo de Delfos, não era um demagogo, ele de fato acreditava nos princípios da ética e das virtudes que defendia. Não aceitar a própria condenação à morte seria renegar todo o seu trabalho. Não houvesse morrido, ele teria colocado toda a sua filosofia em cheque. Uma reputação de uma vida inteira teria se perdido. Ao falar em sua defesa, ele não poderia ir de encontro às virtudes que tanto defendeu, inclusive à submissão às leis da Polis – cidades-estados da Grécia antiga.
Neste contexto, a morte de Sócrates não representa o fim de uma vida, mas sim o início de uma lenda, de um mito, de um herói. O veneno – cicuta, também não pode mais representar uma punição, uma condenação, o extermínio de uma vida, mais sim o tomar para si as responsabilidades que a vida nos obriga a aceitar em decorrência das nossas próprias escolhas. Tomar consciência de si mesmo e ter a coragem de enfrentar a sociedade de cabeça erguida é a coisa mais difícil de aceitar e encarar. Mas também é o ápice do autoconhecimento humano.
É pura glorificação do homem ético. É a coroação de uma vida coerente com suas próprias ações. Não só é aceitação de si mesmo, como é, antes de tudo, uma capacidade incrível de autoconhecimento. É se ver diante de espelho e aceitar completamente a imagem refletida, sendo capaz de reconhecer cada imperfeição, cada cicatriz, cada ruga, mancha ou ferida sem medo de mostrar, sem maquiagem, pele nua. Isto é pura consciência de si.
Mas chegar a esse estágio de vida, a esse nível de consciência, não é tão simples, não é tão fácil e também não é para qualquer um. Quem chegou a esse estágio se destacou não pelo que queriam que os outros vissem neles, mas pelo que eles foram. Exemplo além do próprio Sócrates, podemos citar Jesus Cristo entre outras mentes iluminadas e criativas, cada um em sua religião, criação e legado.
Na pós-modernidade, a dose de cicuta que precisamos tomar vai além da descolonização – é buscar valores autênticos do nosso próprio ser até chegar ao ponto de poder dizer, com leveza de alma e reconhecer “eu sei quem sou”, e nisso consubstanciar toda a nossa essência, potencialidade e limitações. É tomar, a cada dia, nossa pequena dose de cicuta, fazendo morrer toda artificialidade e máscara com que nos vestimos diariamente na tentativa de parecer, mesmo não sendo. É desnutrir o fingimento e nutrir a autenticidade. E você, já tomou a tua dose de cicuta hoje?